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RESENHA | Coelho Maldito de Bora Chung

(Ilustração da Capa: Ing Lee)

COELHO MALDITO

Tema: Fantasia, Horror, Patriarcado

Coelho Maldito é uma coletânea de contos fantásticos que mergulham nos paradoxos e tensões da sociedade moderna coreana. Com uma linguagem afiada e atmosferas surreais, a obra coloca frequentemente mulheres no centro das narrativas, revelando, por meio de situações inusitadas e simbólicas, as múltiplas formas de opressão que enfrentam.

Essa edição foi publicada em 2024 pela Editora Alfaguara e traduzida pela Hyo Jeong Sung, formada em Ciência da Linguagem pela Universidade de Paris IV Sorbonne.

O livro reúne 10 contos de diferentes extensões, cada um explorando novos ambientes, personagens e elementos de fantasia.

"Tudo que é usado em maldição deve ser bonito", era o que o meu avô sempre dizia. (p.7)

O primeiro conto, 'Coelho Maldito', narra a trajetória de uma maldição que assombra uma família por gerações, transmitida por um objeto. O texto é maravilhosamente construído, conduzindo o leitor por um caos crescente. À medida que a história avança, é possível visualizar com nitidez cada acontecimento e, o que deveria ser perturbador, se torna curioso e envolvente até o desfecho. 

'A cabeça' é um ser abjeto formado por resíduos corporais descartados pela protagonista, como fezes e cabelos. À medida que essa criatura se desenvolve, ela passa a assombrá-la especialmente nas suas idas ao banheiro, tornando-se uma presença constante e perturbadora. Mais do que um simples monstro, 'a cabeça' encarna o que foi expelido, rejeitado e retorna como aquilo que abala a identidade da protagonista. Essa materialização (daquilo que deveria permanecer fora do corpo, do eu, mas que insiste em retornar) desestabiliza a protagonista e desafia seu autoconhecimento.

"A mulher virou-se e olhou para a cabeça. Sem dizer nada, ajudou a filha a terminar de enxaguar o sabonete das mãos e a secá-las, então fez a menina sair primeiro." (p.35)

Em seguida, o terceiro conto 'Dedos Gélidos' narra um acidente de carro que se repete incessantemente, apresentando uma atmosfera de distorção temporal e colapso da realidade. A repetição do evento intensifica o horror psicológico e instaura a constante incerteza e insegurança, não apenas para a protagonista, mas também para o leitor. Aqui, o problema fica em aberto, e não sabemos se sua origem está no mundo real ou na mente da personagem.

O quarto conto, 'Menorréia', acompanha uma jovem que menstrua por mais de dez dias consecutivos (um período significativamente acima do considerado normal). Ao procurar atendimento médico e realizar exames, ela recebe a notícia inesperada de que está grávida, algo que, dadas as circunstâncias, parece biologicamente impossível. A partir daí, a narrativa se transforma em uma crítica contundente à pressão patriarcal: a protagonista é subitamente compelida a encontrar um "pai" para a criança que ainda nem nasceu. Trata-se de um dos contos mais desconfortáveis da coletânea, justamente por expor a violência simbólica e institucional que cerca o corpo feminino.

'Adeus, meu amor' apresenta o conflito amoroso entre uma mulher e seus andróides, que, ao serem configurados segundo seus desejos, começam a manifestar impulsos humanos e a agir de forma imprevisível e irracional. Esse conto me lembrou a série 'Black Mirror' e como as diversas facetas do mundo tecnológico podem mascarar a realidade solitária e vazia do ser humano.

Depois, o conto 'A Armadilha' narra o sombrio encontro de um homem com uma raposa ferida e presa em uma armadilha. Ao se aproximar para ajudá-la, ele percebe, surpreso, que da perna machucada não escorre sangue... mas ouro. Não pude deixar de associar aos tempos atuais, em que muitas pessoas são seduzidas pelos jogos de azar online, custando até mesmo a própria família.

Todas as noites, o fantasma dourado e translúcido surgia diante da cama do pai e perguntava, sangrando pelos olhos, pela boca e pela barriga dilacerada: — Meu bebê... Onde está meu bebê... (p.117)

O sétimo conto, 'Cicatriz', combina fantasia elementos de fábula folclórica sobre um menino sem nome que é sequestrado e atormentado por um monstro com aparência de pássaro em uma caverna, deixando-o com cicatrizes físicas e psicológicas. Quando ele consegue escapar, acaba sendo explorado por um homem cruel que o obriga a lutar em arenas brutais. A história explora temas como o abuso, a perda da infância, ganância e a crença popular. É o maior conto do livro.

'Lar Doce Lar' apresenta uma mulher orgulhosa de conseguir pagar suas próprias contas, mas logo tem a sua harmonia frustrada pela irresponsabilidade do marido quanto pela degradação física de um edifício que comprou. Seu consolo vem de uma misteriosa criança que habita o porão e pune aqueles que a prejudicam. 

O nono conto, 'O Senhor do Vento e da Areia', aborda temas como ganância e manipulação, revelando a face sombria de homens tiranos que almejam apenas a conquista de terras, ignorando completamente o bem-estar de seu povo.

Por fim, o décimo e último conto, 'Reencontro', acompanha uma mulher que começa a ver fantasmas do passado e inicia um diálogo enigmático com um homem, cuja condição, viva ou morta, permanece ambígua. A narrativa flerta com o sobrenatural e convida à reflexão sobre memória, perda e o tempo.

Estejamos vivos ou mortos, não passamos, na verdade, de fantasmas do passado. (p. 227)

A autora

Bora Chung - Foto por HyeYoung

Bora Chung é uma escritora, tradutora e acadêmica sul-coreana, reconhecida por suas histórias que combinam elementos de horror, fantasia, ficção científica e crítica social. Sua coletânea de contos Coelho Maldito (Cursed Bunny) ganhou destaque internacional ao ser finalista do International Booker Prize em 2022. Com mestrado e doutorado em literatura, Chung leciona na Universidade Yonsei e traduz obras do russo e do polonês para o coreano.

Referência Bibliográfica

CHUNG, Bora. Coelho Maldito. 1. ed. Tradução Hyo Jeong. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2024.

Comentários

  1. Que resenha incrível, você conseguiu capturar a atmosfera sombria e poética de Coelho Maldito com tanto cuidado e delicadeza!
    Mal posso esperar pra ler a obra 🥰

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