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RESENHA | Atos Humanos de Han Kang

ATOS HUMANOS

Tema: Massacre, Política, Protesto

Atos Humanos é um romance da escritora sul-coreana Han Kang — laureada com o Prêmio Nobel de Literatura em 2024 — que mergulha de forma poética e dolorosa nas memórias do Massacre de Gwangju, ocorrido em 1980, quando o governo militar sul-coreano reprimiu brutalmente um levante popular pró-democrático. A obra, embora inteiramente fictícia, é baseada em eventos reais, e busca dar voz às vítimas, sobreviventes e testemunhas dessa violência estatal.

O livro foi publicado no Brasil em 2021 pela Editora Todavia, com tradução de Ji Yun Kim.

Com uma estrutura narrativa fragmentada e múltiplos pontos de vista, Han Kang constrói um poderoso retrato da dor coletiva, da perda da identidade e da busca por dignidade em meio ao terror. Mais do que apenas um relato histórico ou político, Atos Humanos é um questionamento profundo sobre o que nos torna humanos diante da barbárie. A autora propõe uma reflexão sobre a memória, o corpo e a linguagem (ou sua ausência) em contextos de repressão. A experiência do luto, do trauma e da culpa permeia cada capítulo, formando um mosaico de vozes que se entrelaçam em um grito coletivo silenciado pela história oficial.

Entre as várias vozes apresentadas, temos a de um estudante que procura o corpo do amigo em meio a inúmeros cadáveres que ocupam o chão de um ginásio; o testemunho póstumo de um espírito que paira em torno de um “pagode de corpos”; e a de uma mãe enlutada. 

Percebemos também a fragilidade entre o desejo de viver e morrer dos personagens. Enquanto alguns se agarram à vida como ato de resistência, outros, exaustos pela dor, encaram a morte não como derrota, a única saída possível de um mundo onde o corpo já não suporta existir.  Em uma das passagens, um personagem suplica me mate de uma vez” enquanto é espancado, e é impossível não se compadecer de sua dor; é visível naquele instante que ele deseja morrer a ter que sofrer. 

Como seguir adiante quando o próprio corpo carrega as marcas da tortura e a memória insiste em reviver o luto dos que já foram silenciados? Como ser grato pela vida se o simples ato de sobreviver gera desgaste mental e físico? Essas e outras perguntas ressoam ao longo do livro, revelando que, para alguns, continuar vivo é um fardo quase insuportável. 

A censura provinda da ditadura militar é outro elemento central na narrativa.

Aos poucos, vemos se formar um mundo de exceções onde famílias, estudantes e trabalhadores vivem sob a constante vigilância. Policiais à paisana, perseguições sindicais e a imposição da lei marcial fazem parte desse cenário opressivo. A tinta preta da censura apaga livros, silencia letras de músicas, risca textos teatrais, sufocando a liberdade de pensamento. Afinal, mais do que eliminar o corpo físico, o objetivo do regime é dizimar um ideal coletivo: o espírito jovem, crítico e inconformado que questiona, busca e exige transformação social.  

Historicamente, a Coreia sempre revelou uma notável capacidade de resistência diante de sucessivas invasões e regimes opressivos. Seu hino nacional, o Aegukga, simboliza esse espírito de perseverança e orgulho, expressando o anseio por liberdade, unidade e reconstrução em meio às adversidades que marcaram o país. Não por acaso, os personagens do livro entoam corajosamente o hino nos momentos mais extremos de repressão, lembrando-nos de que, se nem o silêncio é capaz de protegê-los, o canto uníssono ao menos reafirma a dignidade e a resiliência que sempre acompanharam a nação coreana. O hino é um lembrete de que todos pertencem a uma mesma nação, ainda que o próprio Estado aja como inimigo.

Han Kang nos lembra que, quando tudo tende à desumanização, continuar a sentir e a escrever é um dos últimos atos humanos para que não nos esquecemos de como tudo foi um dia.

Sobre a autora

(Reprodução: Han Kang)

Han Kang, natural de Gwangju, na Coreia do Sul, começou a sua carreira em 1993 como poeta, mas desde então passou a se dedicar principalmente à escrita de romances e contos. Em sua obra, ela aborda traumas históricos e sistemas invisíveis de regras, expondo, em cada um de seus textos, a fragilidade da vida humana. Sua percepção única das relações entre corpo e alma, vivos e mortos, e seu estilo poético e experimental, a tornaram uma inovadora na prosa contemporânea. Entre suas obras estão 'A Vegetariana', 'Atos Humanos' e 'O Livro Branco'.

Referências Bibliográficas

KANG, Han. Atos Humanos. Tradução de Ji Yun Kim. São Paulo: Todavia, 2021.

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